A greve nas
universidades federais, que já dura quase 60 dias, coloca um conjunto de
desafios tanto para os professores quanto para o governo federal quando é
levada em conta a constituição de um sistema universitário público, inclusivo e
capaz de produzir conhecimento de forma acelerada.
O Brasil foi o único
país da América Latina capaz de associar qualidade no ensino de graduação e
pós-graduação com a manutenção de um estrutura pública de ensino.
Diferentemente dos outros países da América Latina, o autoritarismo não
desestruturou o sistema de ensino público, pelo contrário investiu na sua
ampliação.
E mesmo o
neoliberalismo não foi capaz de deestruturar o sistema federal de ensino e
pesquisa existente no país (apensar de algumas políticas do governo FHC terem
apontado nesta direção, como o incentivo as aposentadoria e o arrocho salarial
entre 1994-1998).
Algumas características
do estado e do sistema federal de ensino explicam esta resiliência entre as
quais valeria a pena destacar: o capital privado no Brasil nunca fez
investimentos significativos na área da educação e a qualidade do sistema
público de ensino superior é mais elevado do que a do sistema privado; o
governo realizou investimentos em pós-graduação que se mostraram eficientes e o
país galgou importantes posições no ranking internacional de papers publicados
tendo a sua pós-graduação (fundamentalmente pública) entre as dez principais do
mundo; em terceiro lugar e muito importante, no processo de desestruturação do
estado brasileiro que ocorreu entre 1980 e 2002 as universidades federais
permaneceram estáveis com pouca influência do sistema político e com uma forma
democrática de indicação dos seus dirigentes que a diferenciaram de outras
instituições do governo e ofereceram continuidade nos seus planos de gestão.
Escrito Por Leonardo Avritzer
No entanto, dois
déficits foram sendo gerados ao longo dos últimos 20 anos e se colocam na raiz
do enfrentamento entre professores universitários e governo. O primeiro deles
foi um déficit de inclusão social. O Brasil desenvolveu um sistema público que
exigiu o investimento de recursos vultosos por parte do Estado, mas que não
desempenhava, até o começo da década passada, quase nenhum papel na ascensão
social dos setores mais pobres e nem no acesso de setores historicamente
excluídos (como a população negra) no ensino superior.
Pesquisa sobre o acesso
da população negra ao ensino superior na década de 90 mostrava índices
semelhantes aos dos Estados Unidos no começo dos anos 50. Assim, se colocou no
começo dos anos 2000 a questão urgente da democratização do acesso ao ensino
superior. Em segundo lugar, a questão de uma carreira salarial se coloca para
os professores universitários desde, pelo menos, a metade dos anos 80. O perfil
dos professores universitários mudou rapidamente com a carreira estruturada
entre a categoria de auxiliar e titular deixando de fazer sentido para a maior
parte das universidades há mais de uma década.
Tomemos como exemplo, a
universidade na qual eu trabalho, a UFMG. Ele tem 80% dos seus professores como
doutores, a maior parte deles estagnados na classe de adjuntos, até uma década
atrás. Assim, o problema do sistema federal de ensino se situou na interseção
entre expansão, democratização e a ampliação da carreira. Este é na verdade o
mote da greve atual dos professores.
Antes de abordar as
reivindicações e o seu sentido, vale a pena mostrar como o governo Lula
identificou e tratou estas questões. O governo Lula herdou um sistema
universitário federal praticamente sucateado, no qual o governo federal não
havia investido, seja para aumentar o salário dos professores, seja para
ampliar a qualidade do sistema.
A única política do
governo FHC para as universidades foi a GED, a gratificação de estímulo à
docência que fracassou, não porque fosse uma concepção errada, mas devido ao
arrocho salarial anterior que não foi recomposto antes da sua implementação.
O governo Lula
introduziu quatro políticas para o sistema universitário federal: uma política
de recuperação salarial foi iniciada ainda em 2003; uma nova carreira passou a
contar com a categoria do professor associado conectada com um aumento do
número de vagas para professores titulares, efetivamente criando uma carreira.
Finalmente, com o REUNE
e as políticas de ação afirmativa o governo federal conseguiu aumentar o número
de estudantes das universidades federais de 113.000 para 227.000. Foram ainda
criadas 12 novas universidades federais. Temos, portanto, quatro políticas
ativas durante a última década que colaboraram para re-estabelecer uma relação
entre o sistema público e privado de ensino superior.
O Brasil tem hoje 112
mil professores universitários (segundo a secretaria de gestão do Ministério do
Planejamento) ou 78 mil (segundo o INEP) e em torno de 900 mil alunos de ensino superior em IFES e 55
universidades federais. É neste contexto que se colocam as questões
fundamentais que geraram a atual greve: por um lado, o esforço de ampliação do
sistema gerou um sistema muito mais caro e há também uma estagnação do salário,
em especial da faixa de professor adjunto. Um professor adjunto ganha hoje 91%
do que ganhava ao final da greve de 1998. Os aumentos reais se mantêm apenas
para os associados e titulares. É dentro deste quadro que devemos analisar as
reivindicações da atual greve dos professores das universidades federais.
Existem quatro
reivindicações de peso na atual greve, duas fazem sentido – a ampliação da
carreira de professores universitários e a equiparação salarial com algumas
carreiras de servidores técnico-científicos – e duas não fazem o menor sentido: a concessão de
ganhos reais para todos os níveis da carreira; e a equiparação da carreira dos
professores da ativa com os professores aposentados. Analisemos com maior vagar
cada uma das principais reivindicações:
Se tomamos o primeiro
dos pontos, a concessão de aumento real para todos os níveis da carreira,
percebemos, de saída, aquilo que há de problemático no movimento docente. A
ideia de carreira implica justamente que alguns professores aumentem os seus
salários pela via da qualificação. Este é o caso da classe de professor auxiliar que fez sentido no
passado, mas não faz sentido hoje, já que não é desejável que uma universidade
contrate professores sem qualquer titulação. Também é o caso em muitas
universidades da classe de professor assistente. Na verdade, ambas as classes
nunca foram desejáveis, mas estavam de acordo com a capacidade de formação do
sistema de pós-graduação brasileira nos anos 80 e 90. Hoje, o sistema de
pós-graduação no país permite que se contratem pelo menos mestres, mesmo em
áreas como a medicina. Assim, não existe nenhum motivo para que as classes mais
baixas da carreira tenham aumentos reais. Isto seria um desincentivo para a
qualificação docente. Neste sentido, defendemos que os aumentos reais comecem
na classe de professor adjunto, para incentivar a qualificação docente. Devemos
defender a reposição salarial integral a partir da categoria dos professores adjuntos, que, segundo alguns
cálculos, ganham apenas 91,5% do que ganhavam após a greve de 1998.
A segunda reivindicação
é a ampliação da carreira docente. A carreira, tal como foi concebida no começo
dos anos 80, privilegiava a formação dos professores, portanto, a obtenção dos
títulos de mestrado e doutorado. Visto, retrospectivamente, este foi um ponto
muito importante que ajudou na qualificação dos professores das universidades.
No entanto, o que está colocado hoje é a ampliação da carreira com uma classe a
mais, ou entre professor adjunto e associado ou entre associado e titular, uma
ampliação baseada no desempenho e não na formação. Esta nova classe deve
concentrar parte fundamental dos ganhos junto com a classe de professores
associados inclusive para desvincular os aumentos reais dos ganhos dos
professores aposentados. O que nos conduz a terceira reivindicação.
A terceira
reivindicação é a equiparação de vencimento da carreira dos professores da
ativa com os aposentados. Este é um ponto completamente equivocado seja do
ponto de vista de uma política de aposentadoria, seja do ponto de vista de uma
política de carreira. O Brasil já tem uma das políticas de aposentadoria mais
generosas do mundo. Nenhum país da OCDE tem uma política de aposentadoria
integral aos 60 anos como o Brasil tem. Vale lembrar que a maior parte dos
aposentados progrediu na carreira no momento da aposentadoria e goza de um
valor superior aquele que auferia quando estava na ativa. Não existe nenhum
motivo para os aposentados serem contemplados por uma reestruturação da
carreira. Pelo contrário, o desejável é a esterilização progressiva de alguns
pontos na carreira que oneram o governo sem criar benefícios para os
professores universitários da ativa. Neste sentido, uma possível solução para o
impasse entre governo e professores universitários seria a diminuição de um ou
dois níveis na classe de professor adjunto de maneira a propiciar uma
progressão mais rápida dos professores para a classe de professor associado.
Esta sim, deveria se beneficiar de aumentos reais, desde que condicionados a
índices claros de produtividade.
Vale a pena elaborar o
quarto ponto. Os professores universitários pedem a sua equiparação a carreiras
similares do estado, seja a carreira de ciência e tecnologia, sejam carreiras
como a do IPEA. Esta é uma reivindicação justa no médio prazo, desde que
condicionada a formas claras de aferimento da produtividade. As carreiras do
estado são carreiras de elite e, envolve, via de regra poucos profissionais,
como é o caso do IPEA ou da Fundação Oswaldo Cruz. A contratação destes
profissionais é por concursos que exigem alta qualificação. Tudo isto aponta
para dois fatos: não devemos conceder aumentos reais para os profissionais que
ainda não se qualificaram devemos condicionar os aumentos reais a um misto de
qualificação com desempenho por produtividade.
Abaixo proponho o que
pode ser uma possível carreira de professor universitário.
Classe de professor
auxiliar:
(Extinta)
-professores
reclassificados para assistente mas sem gratificação de mestrado
Professor assistente
(mantida)
-Sem aumento real
Professor adjunto
(Mantida com duas
classes I e II)
-Recomposição da
inflação tomando 1998 (com GED) como base 100
Professor associado
(Mantida com quatro
classes)
-Recomposição da
inflação tomando o salário do adjunto I em 1998 como base 100.
-Índice de produtividade
incidindo sobre o aumento real anualmente.
Nova categoria
Professor livre-docente
(Ascensão por concurso
público com banca)
-Recomposição da
inflação tomando o salário do adjunto I em 1998 como base 100.
-Índice de
produtividade incidindo sobre o aumento real anualmente
Professor titular
(Mantida com uma
classe)
-Recomposição da
inflação tomando 1998 como base 100
-Índice de
produtividade incidindo sobre o aumento real.
Entendo que esta
proposta atende à necessidade de aliar democratização com produtividade e
excelência. A extinção da classe de auxiliar tem como papel estabelecer
condições mais exigentes de entrada no sistema. A ausência de aumento real para
professores assistentes tem como objetivo incentivar a aumento salarial através
da qualificação e não automaticamente como quer o sindicalismo.
A redução das classes
na careira de professor adjunto tem como objetivo propiciar uma progressão mais
rápida ainda que não automática para professor associado entre aqueles jovens
professores produtivos que recém ingressaram na carreira. Só a partir da classe
de professores associados é que devemos pensar em aumentos reais tomando 1998
como base.
Ainda assim defendo que
parte dos aumentos reais sejam vinculados ao desempenho. É preciso negar a
legitimidade do sindicalismo de propor uma carreira que jogue por terra aquilo
que se alcançou nas universidades federais, uma carreira baseada nos títulos e
na progressão por mérito. Só assim alinharemos a expansão e a democratização do
ensino público com a qualidade que tem sido a marca do sistema federal de
graduação e pós-graduação no país.
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